sábado, janeiro 01, 2011

Lauro e Lígia

A porta foi aberta depois de algumas muitas batidas, o calor de fora era grande e entrou com ela casa a dentro.

Era Lígia que estava ali, mas não sabia bem para que fora chamada por ele. Ele estava ali porque morava ali, e havia chamado Lígia para uma coisa, mas tinha idéias de outras na mente.

Lígia senta em uma cadeira pequena e fica esperando Lauro, espera com os olhos ansiosos… olhando todos os cantos da casa, aquele reconhecimento típico, pois nunca estivera lá.

Lauro oferece uma bebida, ela pede algo gelado, um suco, talvez água, talvez gelo puro e ri.

Lauro sai da sala e some nos corredores, escuta-se barulho de copos e portas e colher. Depois de um tempo Lauro volta com um copo comprido. Dois copos. Um é dela.

Não sabe o que é, mas nem pergunta, tem vergonha: sempre pergunta coisas a ele e isso o deixa sempre superior, o mais instruído e viajado. Mas de suco ela entende, vai entender, seja lá o que for aquela água verde. [Será clorofila ou uva, pensei eu ao teclado]

Toma o suco, bebe leve, preparando pro gosto ruim que possa ter, controlando pra não fechar a cara se for amargo, não se fará de surpresa, senão ele vai descobrir.

Ele toma algo amarelo com gelo, licor talvez, xixi talvez. Dá tempo a ela de descobrir que fruta compõe sua bebida. Resolve testá-la e pergunta se gostou do suco.

Ela fica nervosa e percebe que ele esta jogando novamente, sempre se diverte com ela. Todo o jeito da moça o diverte. Mas ela não dará esse gosto… imagina.

Sim, muito saboroso, há muito que não via essa fruta. Não dá por aqui…

Dizendo isso olha pra ele triunfante. Lauro então levanta com um sorriso admirado e some nos corredores para a cozinha. Volta com mais liquido amarelo e tenta travar assuntos com Lígia.

Senta relaxado no sofá e se diverte com a figura tensa a sua frente, toda contida, um animal acuado num lugar desconhecido. Se fossem outros os tempos ela teria andado e olhado cada canto e já estaria à vontade, mas a idade adulta carrega a vivacidade e deixa timidez e recato. Deixa também uma jovem bonita, escondida em si, que olha com medo e vergonha até pros próprios sapatos feios que usa.

Seu copo está vazio, o dela ainda no meio, e ele já esta cansado do silencio. Lígia se sente acomodada no meio sem palavras.

Um convite: vamos ao quarto? Ele pergunta já saindo da sala. Quem escreve quem lê também vai.

Sigamos então [eu e você leitor], os dois pelos corredores, é uma casa grande, velha e com a falta de decoração que só um homem pode tornar possível elegante.

Esqueci de dizer que ela não reflete sobre aquilo e segue a voz pela casa. Chegam ao destino. O quarto é grande, muito claro e favorecido por janelas altas com cortinas de renda encardida, que esvoaçam como fantasmas. [eu não pregaria os olhos se dormisse ali] [ao que parece ele também não, pois tem olheiras enormes.]

Senta suave numa espreguiçadeira e ele numa cadeira de escrivaninha abarrotada de papeis. Mexe na mesinha, acredita estar organizando um pouco a bagunça e tudo fica mesmo como esta. E ali mesmo se põe a escrever. Talvez uma carta. Testamento talvez.

Lígia ainda não muito a vontade sentada, eu diria completamente travada e desconfortável, organiza as idéias, se mexe um pouco tentando acomodar-se, mas o colchão fofo não deixa, e continuando ruim, pior que antes se mantém seria e reta onde deveria estar deitada.

Põe-se a observar o quarto e Lauro escrevendo em meio à bagunça. Resolve ajudar, mas desiste no meio do movimento, o que deixa o gesto confuso e chama atenção de todos nós na sala. Lauro olha estranho e sorri para ela.

Para não deixar a ação morrer assim… tão esquisita (ela não quer ser esquisita na frente dele, imagina), vai ate a janela olhar a rua.

Varias pessoas, muitas de todos os tipos e tamanhos e larguras, se movimentam, se esbarram se desculpam e continuam seu andar, suados, cansados e desesperados por água fresca e sombra também. Tudo ocorrendo lá embaixo, sem ver que são observados por uma mocinha curiosa e entediada, que veio buscar algo que o Lauro dará a ela. Será que ele sabe que ela fez aniversario? Não… ela deve então contar.

Vira-se e vai à escrivaninha, do outro lado do quarto, desvia da cama gigante e chega perto dele, abaixa-se com as mãos em seus ombros e lhe diz por trás, na altura dos ouvidos: sabia que fiz anos a 3 dias?

Lauro um pouco assustado com o movimento e tendo sido retirado de dentro do papel como estava, tem um momento de pausa, pega as finas mãos ainda em seus ombros e lhe encara o olhar. Ela então percebe que o tocou, que se aproximou mais do que devia e ele descobre o contato das mãos. Assim permanecem um tempo ate que um vento quente invade o quarto, vindo da porta.

Todos nós [eu, você leitor e até Lauro] vemos as bochechas coradas dela enquanto puxa as mãos de volta e se afasta em passos longos. Lauro levanta ainda encarando a moça e a gente espera que ele vá beijá-la.

Lauro desvia o olhar e vai à direção da porta. Fecha, mas não passa a chave, porque ele não é maluco e porque não tem ninguém na casa mesmo.

Voltando seu olhar, diz que se lembrou sim, de seu aniversario, mas que não pôde ir, sem mais explicações e a faz sentar novamente na espreguiçadeira.

Pega em sua mão, ajoelha-se a sua frente e pergunta se sentiu sua falta na festa.

Quando Lígia se prepara para responder que não, que nem se lembrou dele, imagina, ele toca seu queixo, levanta e sai do quarto.

Espera um momento que eu já volto!

Volta cheio de coisas, uma caixa grande, outra maior e folhas brancas. Vamos brincar de uma coisa? Agora a pouco lembrei de quando ficava aqui com minha mãe e brincávamos nesse mesmo quarto, toma, desenha. Desenha a mim, como quiser.

Lígia se diverte com a idéia, mesmo imaginando o que ele esta tramando com isso. Nas caixas estão tintas, muitos potes de tinta, canetas, lápis de todas as cores.

E os dois se põem a desenhar, ela esquece sua postura e relaxa. Ele desvia sua mente dos papeis que escrevia e a olha, cada detalhe do rosto. Ele a olha.

Ela desenha muito mal, mesmo bonecos palitos. Faz nova tentativa e vê que continua saindo ruim. Mostra a ele e os dois se riem das tentativas sofríveis dela. Ele ficou desenhando por muito tempo, mas um único desenho, ela olha calada. Olha demoradamente sem dizer palavra.

Sabe, minha mãe dizia que todo mundo pode desenhar, bastando pra isso que tenha inspiração. Pois o ser humano é capaz de maravilhas inspirado. Deixa-me fazer outro?

E sem esperar resposta saiu novamente e voltou com uma tela grande. Posicionou-se e ela ainda divertindo-se com a idéia, acabou deixando. Lauro preparou pinceis e começou a retratá-la, fez caretas e às vezes perdia minutos só observando. Ela resolveu inclinar-se, foi se soltando.. soltou também os cabelos, fez caras serias, sorrisos meigos, olhos sensuais. Riu para ele e assim permaneceu, olhando e rindo.

Lauro pintava, olhava e pintava, abusava de cores, dos sorrisos que ela dava, ela era um abuso, aquela garota. Menina danada.

Depois de um tempo acabou, e ela quis ver seu retrato, ele negou, disse q faltavam retoques e que um dia ela veria. Juntou tudo rapidamente e levou embora, pra outro cômodo quem sabe…

Dá azar olhar a obra assim.. sem acabamento.. espera criança que você verá.

Então lembrou de seus papeis e voltou a eles, e Lígia refeita do clima de antes, se recompôs, prendeu seus cabelos, ficou envergonhada, ainda riu e lembrando de seu desenho no papel, ficou imaginando como estaria o do quadro.

Tempo depois, ele terminara seus escritos, envolveu num envelope bonito e cheiroso, pôs selos, mas escreveu apenas iniciais na frente. G.B.

Lígia saiu da casa, com seu desenho na bolsinha, uma pasta grande e o envelope na outra mão, com recomendações serias de entregar imediatamente. Oras se queria pressa, porque perdeu tanto tempo!? Fez que sim com a cabeça, virou para a rua e sumiu no meio da gente, rápido, pois o sol já se ia. Lauro da porta sorria leve e calmo.

Já em casa, com as irmãs, retira da bolsa o retrato que Lauro havia feito: um desenho tosco, um circulo, com pequenos olhinhos dentro, um cabelo que se fazia de três ou quatro fiapos estranhos, pernas tortas e compridas, um desenho horrível, pior que o dela. As irmãs riam muito da estranha caricatura, nisso pelo menos ela era melhor, desenhava melhor. Por isso mesmo não entendia o porquê do mistério do quadro, queria ele talvez mais tempo para piorar? Ou jogar mais cores estranhas... ou ia dá-lo de presente a ela? Estaria agora se divertindo com o quadro horrível em mãos? Adormeceu com esses pensamentos e com raiva dele e ódio de si, por ter se deixado levar tão longe.

Os dias passam rápidos e quentes, no começo Lígia ainda se lembra do quadro, mas o tempo passa e ele é apagado pelos afazeres que ela tão ocupadamente resolve.

Tempos depois, ela recebe um pacote grande, lembra do quadro, sabe que é ele e rasga tudo curiosa.

Quando abre outra surpresa, outro silencio, olha cada detalhe abismada, impressionada e feliz… começa a rir. Gargalha e sussurra coisas para si. Junto há um envelope em que se lê: É possível fazer maravilhas!

Atrás do quadro o nome dele e da pintura ‘Suco de Quiwi’.

Na frente um lindo retrato, uma moça linda jogada numa espreguiçadeira, com um rosto sério, sorriso meigo e olhar sensual, cabelos de qualquer modo, vestido desalinhado e um pequeno detalhe que chamava atenção no quadro todo, toda a pintura muito colorida, contrastava com a seriedade dos sapatos pretos. Sapatos horríveis!

E ali sentada ela sorriu e lembrou. E agradeceu ao invisível, fez com que seu sorriso chegasse àquela rua, onde Lauro ainda morava, batesse na porta e invadisse o coração do moço. Foi o melhor presente, esperado e demorado, enganado também, pois ela esperava rabiscos, mas até nisso ele ganhou, era melhor…

Ela só ganhava nos sapatos, nenhum era mais feio! E quiwi… quem diria!

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